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Samba é elemento central da resistência

Foto: Márcio Meirelles

O historiador Luiz Antônio Simas é uma referência quando o assunto são as raízes negras do povo brasileiro. Carnaval, divindades, encantarias, batuques, costumes e culturas da diáspora africana no Brasil são temas familiares (e caros) a este carioca que cresceu frequentando terreiros, botequins e rodas de samba.

Autor de diversos livros, entre crônicas , biografias e ensaios, Simas acaba de ganhar o prêmio Jabuti – uma das mais respeitadas e importantes condecorações da literatura brasileira – na categoria Teoria/Crítica Literária, Dicionários e Gramáticas (não ficção) com “Dicionário da História Social do Samba”, em parceria com Nei Lopes, publicado pela editora Record.

Nesta entrevista para a Revista Tuhu, ele reforça a importância do samba para a disseminação e resistência da cultura negra no Brasil ao mesmo tempo em que expõe as manobras para tirá-lo “das mãos dos que o criaram e amaciá-lo para a indústria fonográfica”.

Tudo para “apagar” sua origem nada glamourosa para os padrões burgueses: os geniais compositores faziam parte de uma turma do Estácio formada por “marginais, rufiões, jogadores de ronda, malandros com folha corrida, pequenos trambiqueiros, moços que morreram assassinados, sifilíticos e malucos, batuqueiros das porradas na balança, babalorixás, cambonos, ogãs, trabalhadores informais de viração etc”.

Neste sentido, desde a sua origem, o samba tem um papel central na reflexão sobre racismo no Brasil, apresentando uma trajetória repleta de lances aparentemente contraditórios: “o samba permanece porque é potente e soube se adaptar às circunstâncias”, afirma.

Por Luciana Bento

Que papel podemos atribuir ao samba, desde a sua formação, à resistência e afirmação da cultura negra no Brasil e sua “aceitação” em círculos que não são normalmente permeáveis a outros aspectos da nossa herança africana?

Reconheço a importância fundamental do samba e o seu papel neste sentido, mas acho que essa questão deve ser problematizada. Ao mesmo tempo em que afirma a força das culturas afro-diaspóricas, o samba vive um dilema inverso a este reconhecimento. No processo de incorporação do samba a uma possível construção identitária feita de cima, sobretudo a partir da década de 1930, tirar o samba das mãos dos que o criaram e amaciá-lo para a indústria fonográfica – atenuando a rítmica macumbada que caracterizava os tambores centro-africanos redefinidos no Brasil – foi estratégia sistemática.

Nesta perspectiva, era necessário apagar o fato de que a maior e mais vigorosa invenção cultural da cidade do Rio de Janeiro, o samba urbano, tem fundamentos africanos cruzados com informações diversas e foi obra de uma turma do Estácio formada por marginais, rufiões, jogadores de ronda, malandros com folha corrida, pequenos trambiqueiros, moços que morreram assassinados, sifilíticos e malucos, batuqueiros das porradas na balança, babalorixás, cambonos, ogãs, trabalhadores informais de viração etc.

A própria docilidade estratégica, afirmativa e protagonista, de Paulo da Portela incomodava este projeto domesticador. Imagine o que representava a turma do Estácio para o projeto civilizatório de recorte canônico que seduziu, e seduz ainda, segmentos das elites brasileiras?

O senhor vê a contradição entre a paixão nacional pelo samba, a celebração do Carnaval como principal festa popular do País e o racismo – cada vez mais explícito – da sociedade brasileira? Caiu a máscara da “miscigenação cordial” ou continuamos “convivendo bem, apesar das diferenças”?

Eu vejo o Carnaval como um momento de enfrentamento simbólico poderoso. A carnavalização do samba, já domesticado e livre – do ponto de vista da narrativa – do “lado obscuro” dos sambistas, aliou-se a uma suposta alegria brasileira e funcionou nos tempos mais recentes como um elemento estimulador da inclusão pelo consumo de bens ou pelo desejo de consumi-los.

A festa do Carnaval, mimetizada nos desfiles das “super escolas de samba”, por exemplo, em seu discurso fabular de harmonia e país possível pelo consenso, é aquela que não quer a fresta, propiciadora do inesperado e potencialmente ameaçadora da ordem normativa. Neste sentido, o carnaval sempre foi espaço de uma disputa entre a proposta normatizadora e as pulsões que afrontam esta proposta. Como tal, ele também é espaço de confronto entre o discurso da mestiçagem cordial e o racismo estruturante da formação brasileira, que para mim está cada vez mais evidenciado.

De alguma forma, a mestiçagem do samba (e sua aceitação em círculos da burguesia) foi importante para o empoderamento negro? Há contradição (ou opressão) nisso ou é – também – mais uma forma de sobrevivência e fortalecimento da cultura negra?

Acho que um dos problemas mais desafiadores que o samba coloca para que pensemos o Brasil está expresso na pergunta. Ao mesmo tempo em que foi (é) importante para a afirmação do negro, a história do samba também foi marcada por processos de expropriação, em que muitos sambistas se viram alijados dos frutos de suas criações.

O samba virou elemento crucial na construção de certa ideia de identidade brasileira em um processo dinâmico, que não comporta leituras estreitas ou simplificadas na dicotomia do bom e ruim, do empoderamento ou da opressão. Essses fenômenos acontecem ao mesmo tempo; a legitimação e a expropriação convivem na história do samba de forma vigorosa. O samba permanece porque é potente e soube se adaptar às circunstâncias e, paradoxalmente, porque foi despotencializado pelo nosso racismo cordial. 

Historicamente, como os ritmos africanos (que deram origem ao samba) influenciaram a luta e a resistência dos povos escravizados contra a opressão dos senhores? Pode-se dizer que a cultura teve um papel fundamental neste contexto?

Muito mais do que gênero musical ou bailado coreográfico, o samba é elemento de referência de um amplo complexo cultural que dele sai e a ele retorna, dinamicamente. Esse complexo cultural é afro-diaspórico. A escravidão é um fenômeno dilacerador de identidades, sociabilidades e pertencimentos. Na diáspora, é pela cultura que essas identidades, sociabilidades e pertencimentos serão sistematicamente reconstruídas.

Nos candomblés, nas maltas de capoeiras, nas rodas de samba, vivem saberes que circulam; formas de apropriação do mundo; construção de identidades comunitárias dos que tiveram seus laços associativos quebrados pela escravidão; hábitos cotidianos; jeitos de comer, beber, vestir, enterrar os mortos, amar, celebrar os deuses e louvar os ancestrais.

Limitar o samba ao terreno imaginário onde mora a alegria brasileira do carnaval é, por isso, um reducionismo completo. O discurso do samba, e de toda a múltipla musicalidade oriunda da diáspora africana, também está no fundamento do tambor, que fala daquilo que nossas gramáticas não nos preparam para ler.

O senhor pode citar exemplos de momentos marcantes em que o samba explicitamente contribuiu para o empoderamento e resistência negra?

O processo de criação das escolas de samba me parece ser o mais contundente exemplo da questão colocada. Acho, todavia, que essa questão do empoderamento e da resistência nunca é chapada; ela é repleta de contradições, negociações e artimanhas de sobrevivência.

Penso na síntese precisa da professora Monique Augras: “O desejo (das escolas de samba) de brilhar será acompanhado pela constante preocupação em obedecer às regras do jogo”. Em certo sentido, pode-se observar que o desenvolvimento das escolas de samba é cheio de lances, até concomitantes, de adesão, resistência, afago, porrada, confronto, negociação e adequação. As agremiações caminham lidando o tempo todo com o conflito entre o desejo de expressar suas tradições, concepções de mundo e bens simbólicos e a necessidade, para que esse desejo seja realizado, de atendimento às exigências de instâncias aparentemente fora do ambiente do samba: o poder instituído, a indústria turística, a mídia ou o crime, por exemplo.

Além do samba, outros gêneros musicais se apresentaram – em diferentes épocas – como símbolos da cultura e empoderamento negro. Jorge Ben, Gilberto Gil e Tony Tornado são exemplos mais conhecidos de cantores que, inspirados por uma atmosfera mundial, eles ostentaram seus black powers e cantaram o “black is beautiful”. O senhor acha que o samba abriu, de alguma forma, caminho para atitudes como estas?

Não sei se abriu caminho é a melhor expressão para tratar desse tema, mas certamente o samba colocou a questão do negro como um elemento de centralidade para se pensar os dilemas de uma sociedade estruturalmente racista que, ao mesmo tempo, cria sistematicamente subterfúgios para camuflar esse racismo. Cruzado com todo o panorama mundial despertado, especialmente, pelas lutas de afirmação afro-centradas do século XX, o samba certamente foi um dos elementos influenciadores das atitudes de afirmação mencionadas.

Por fim, como o senhor vê o samba – e seu poder  transformador – hoje no Brasil, com todo o contexto da indústria fonográfica, do show bizz e da mercantilização dos enredos carnavalescos? Ele continua resistindo, explicitando diferenças, cutucando preconceitos, disseminando símbolos, costumes e heranças africanas?

Eu acho crucial que pensemos sobre o samba e os efeitos da globalização na representação da identidade cultural brasileira, já que o samba e o carnaval são decisivos para a construção do corpo mitológico e simbólico da brasilidade. Penso, sobretudo, na publicidade e nas maneiras como a propaganda transporta o mito da democracia racial brasileira para o mito da democracia econômica na sociedade de consumo.

Neste sentido, diversas marcas usam e abusam do samba, do carnaval e de uma suposta alegria brasileira – pasteurizada pela estética uniforme da propaganda – como referências que buscam transformar esta mesma tradição em um elemento estimulador da inclusão pelo consumo. A festa globalizada, conforme coloquei antes, em seu discurso fabular de harmonia e país possível pelo consenso, é aquela que não quer a fresta, propiciadora do inesperado e potencialmente ameaçadora da ordem normativa.

No tal mundo globalizado – sobretudo em seu viés cultural/econômico – o samba é, cada vez mais, instado pela indústria do entretenimento a se diluir em padrões uniformes, inclusive de performance, perdendo muitas vezes a vitalidade transformadora e as especificidades dos ricos complexos culturais que se desenvolveram em torno dele. O carnaval viaja no mesmo barco. Por outro lado, vejo crescerem, dentro dos meios do samba, movimentos com uma percepção crítica aguçada desse processo, buscando atentar para os fundamentos do samba e criticar essa captura do gênero e do carnaval pela indústria do entretenimento. Esse jogo, a meu ver, está longe de terminar e apenas comprova que o samba, com todas as complexidades e questões incômodas que coloca, é um elemento central para que pensemos o Brasil de forma complexa. O samba é a nossa mais potente aventura civilizatória.

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