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Escola, um reduto da música brasileira
Por Fernando Gasparini*
Quando Getúlio Vargas tornou obrigatório o ensino de música nas escolas, no início dos anos 1930, um rapazinho albino do interior da Paraíba, em Itabaiana, começou a aprender os primeiros rudimentos de uma arte que o faria mundialmente conhecido nas décadas seguintes. A história de Sivuca (1930-2006), o sanfoneiro que levou o instrumento de fole para orquestras da Europa, é semelhante a dos músicos de origem humilde de sua geração, nascidos nos grotões do interior do Brasil.
Na escola ele assimilou as noções básicas de ritmo, melodia e harmonia – um arcabouço que facilitaria mais adiante a sua aprendizagem autodidata do acordeom. Em sua história, Sivuca lembra ainda que as aulas no colégio lhe despertaram, pela primeira vez, a existência de outras terras e outros povos e outras línguas, e o desejo de conhecê-los. Sua obra sinfônica deixa um legado de profundo amor pela cultura nordestina e de estudo, pesquisa e refinamento dos seus elementos populares.
O desenvolvimento de uma humanidade mais igualitária, solidária e fraternal (o que me soa, em última análise, o desejo mais íntimo de todos) passa necessariamente pela aprendizagem da música, e outras artes, nas escolas públicas. Resultado de uma prática coletiva ao longo da história, substrato de uma cultura e elemento ímpar na formação da nossa identidade, a música oferece mecanismos para ampliar e harmonizar os canais de comunicação entre as pessoas e as sociedades – numa época em que lidar com as diferenças virou peça-chave de sobrevivência nas sonoras (e barulhentas) selvas urbanas.
No contexto cosmopolita do Rio de Janeiro, convém lembrar que nos anos 1940 e 1950, principalmente, e até os dias de hoje, o fluxo de nordestinos na capital deixou sua marca na cultura carioca, sendo aqui o palco de lançamento nacional do rei do baião, Luiz Gonzaga (1912-1989), e também de seu discípulo, Dominguinhos (1941-2013), e vários outros. A sanfona, a zabumba e o triângulo fizeram parte da trilha sonora de muitos que aportaram na cidade, posteriormente se desenvolvendo em comunidades como Rocinha, Borel, Alemão, Rio das Pedras…
São em instituições de ensino localizadas nessas regiões que o projeto Sanfona é Cultura Popular nas Escolas realizará shows didáticos, sob o comando do sanfoneiro carioca Marcelo Caldi, discípulo dos mestres nordestinos do fole. O artista fará um passeio pelo sertão, levando aos estudantes (muitos deles filhos ou netos de cearenses, pernambucanos, paraibanos…) uma mostra musical que conta a história do nordeste, suas tradições e belezas, suas queixas e súplicas, suas riquezas e alegrias. Ao lado de Fábio Luna na bateria e flauta, Nando Duarte no violão de sete cordas e Bebel Nicioli na flauta, Caldi interpreta canções de Sivuca, Dominguinhos e Luiz Gonzaga, dentre vários outros. E faz ainda uma exposição oral, contando, de forma lúdica, o funcionamento da sanfona e os princípios de seu manejo, visando despertar nas crianças e adolescentes o estudo da música.
Premiado pela segunda vez consecutiva no Programa de Fomento à Cultura Carioca, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, o projeto revisitará as mesmas escolas da primeira edição de 2012 (Francisco Paula Brito, na Rocinha; Antoine Magarinos Filho, no Borel; Cláudio Besserman Vianna, em Rio das Pedras; e Mourão Filho, no Complexo do Alemão) e mais uma, no Rio Comprido (Jenny Gomes). O resultado esperado é a criação de um ambiente escolar alegre e voltado para aprendizagem e vivência da música e da cultura popular.
O que somos e pensamos como brasileiros certamente passa pela música, e a música popular brasileira, de uma maneira geral, ofereceu, ao longo das últimas décadas, um arsenal de informações e conhecimentos que nos ajudam a nos compreender como sociedade, como pessoas, como seres humanos. Um legado vivo que precisa buscar instituições para se manter, em diálogo permanente com a juventude. Nesse aspecto, a escola cumpre um valor essencial, porque ajuda a moldar nosso caráter de cidadão.
Levar a sanfona para as escolas em projetos como esse é bater na tecla da educação musical, até que seja efetivamente cumprida e regulamentada a Lei 11.769/08, sancionada por Lula, que retoma a obrigatoriedade do ensino dessa arte. A instituição da lei certamente foi um avanço, resta agora colocarmos em prática, e aprimorar os ouvidos das novas gerações.
* Jornalista com doutorado em educação, autor do livro “Sivuca e a Música do Recife” (Publikimagem, 2011) e coordenador do projeto Sanfona é Cultura Popular nas Escolas