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Uma luta que está só começando

Foto: Arquivo pessoal

Camila Frésca*

“Quero mostrar ao mundo, enquanto posso, nessa profissão de musicista, o erro cometido pelos homens ao pensar que só eles possuem os dons intelectuais e artísticos, e que tais dons jamais serão dados às mulheres”. Assim se expressou, numa dedicatória, a compositora italiana do século XVI Maddalena Casulana, primeira mulher a ter suas obras publicadas na música ocidental.

De lá pra cá as coisas mudaram, é verdade, mas bem menos do que deveriam. Ao longo de toda história da música, é notória a luta das mulheres por espaço e reconhecimento – sobretudo quando o assunto é composição, já que a criatividade foi, durante muito tempo, considerada um domínio exclusivamente masculino.

Ao menos desde o século XVIII a educação musical feminina era vista com bons olhos pelas famílias burguesas. Tratava-se de mais um elemento a atestar uma boa educação, tais como fazer crochê e dominar uma língua estrangeira. Tocar piano ou cantar era apreciado como distração para as moças ou mesmo para animar festas familiares.

Atuar profissionalmente, ao contrário, era visto de forma nada lisonjeira. Há alguns casos clássicos de mulheres próximas a compositores célebres que eram elas mesmas autoras de talento, mas que tiveram seu potencial tolhido ou desestimulado. Fanny Mendelssohn (1805-1847), irmã de Félix Mendelssohn, era pianista e compositora extremamente dotada, mas que, após a infância, foi desestimulada a prosseguir pela família – incluindo o próprio irmão – para voltar-se ao que era esperado de mulheres de sua época e classe social: uma vida doméstica dedicada ao casamento e aos filhos. Fanny deixou mais de 400 obras, algumas delas inclusive publicadas sob o nome de seu irmão.

Antes de Fanny, outra célebre irmã de compositor também foi obrigada a abdicar de seus talentos. Maria Anna Mozart (1751-1829), conhecida como “Nannerl”, percorreu a Europa em turnê com o irmão na infância, sendo descrita, em algumas ocasiões, como superior a Wolfgang Amadeus Mozart como instrumentista. No entanto, quando passou de criança para mulher adulta, apresentar-se em público deixou de ser visto como socialmente aceitável, e Nannerl foi deixada em casa para costurar e procurar um marido, enquanto seu pai, Leopold, continuava a viajar com Wolfgang, promovendo a carreira do jovem músico.

Um modelo exemplar da dificuldade das mulheres em desenvolver carreira na música, mesmo sendo extremamente talentosa, é o de Clara Schumann (1819-1896). Pianista virtuose e compositora dotada, em outro contexto Clara talvez tivesse desenvolvido seus talentos tanto quanto os músicos homens seus contemporâneos – como seu marido Robert Schumann, seu amigo e admirador Johannes Brahms ou seu parceiro musical Joseph Joachim. Mas ela não pôde fugir totalmente ao papel social (e doméstico) imposto às mulheres no século XIX – e que, sob alguns aspectos, perdura até hoje. Acabou abdicando da composição e trabalhou como pianista virtuose apenas para ajudar nas finanças da casa, quando seu marido ainda não era conhecido e, mais tarde, quando ficou viúva, para sustentar os filhos.

Já no Brasil, um personagem exemplar nesse sentido é Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Filha bem criada de família burguesa, Chiquinha utiliza seus dotes de musicista para ganhar a vida quando decide se separar do marido – um escândalo para a sociedade carioca do final do século XIX. Outro escândalo era ter uma mulher apresentando-se profissionalmente em grupos formados quase que exclusivamente por homens, como o “Choro carioca”, de Joaquim Antônio da Silva Callado, do qual ela fazia parte como “pianeira” (termo depreciativo utilizado à época para designar os pianistas que não se dedicavam ao repertório erudito).

De forma pioneira, Chiquinha Gonzaga participou do nascimento de uma música popular de caráter nacional; inaugurou um gênero musical quando compôs a marcha “Ó Abre Alas”, em 1899; deflagrou a campanha pela defesa do direito autoral, que culminou na criação da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT); levou o violão às salas de concerto; e foi a primeira mulher a reger orquestra no Brasil.

A situação da mulher na música muda de forma sensível a partir das últimas décadas do século XIX e sobretudo no início do século XX. Começam a aparecer – em maior número e exercendo seu ofício profissionalmente – compositoras, instrumentistas de orquestra, professoras e até mesmo regentes.

No entanto, traços dessa cultura extremamente discriminatória para com a mulher podem ser sentidos ainda hoje. Para ficar apenas no exemplo orquestral: há menos de 40 anos, conjuntos como as filarmônicas de Berlim e Viena não permitiam a entrada de mulheres em seu corpo efetivo. Essa situação mudou, embora as mulheres continuem sendo minoria em relação aos homens.

Para se ter uma ideia, em pleno 2016, havia na Filarmônica de Berlim 109 músicos homens e 18 mulheres; na Filarmônica de Viena o desequilíbrio era ainda maior: 126 homens para 15 mulheres. Dentro da realidade brasileira, a situação de duas das nossas maiores orquestras, também em 2016, era a seguinte: Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) com 79 músicos homens e 28 mulheres; e Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), 75 homens e 15 mulheres. Se esses números chegam a ser surpreendentes, temos que pensar que ainda há nichos essencialmente masculinos e no qual o desequilíbrio é ainda maior, como a composição e a regência.

É difícil estimar o número de mulheres regentes no mundo. Um levantamento feito em 2013 pela League of American Orchestra junto a orquestras dos Estados Unidos mostrou a existência de uma mulher regente para cada 21 homens. Vale notar ainda que as Américas, a Austrália e a Nova Zelândia são mais abertas à presença de mulheres no pódio do que a Europa. Portanto, apesar de todas as conquistas, as mulheres ainda precisam atravessar um longo caminho para conseguir a igualdade de oportunidades no mundo musical.

Camila Frésca é jornalista e pesquisadora musical. Doutora em música pela ECA-USP, é autora de  “Uma extraordinária revelação de arte”: Flausino Vale e o violino brasileiro (Annablume, 2010).

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